1867-1930
(Retrato de Columbano)
Para me entontecer basta uma primavera ou uma alma - ainda que a flor seja miudinha como a flor do escalheiro.
A vida é o murmúrio de água que me ficou nos ouvidos, é esta tinta, que se me pegou nas mãos e me escorre das mãos, é esta ténue consciência do universo.
O GABIRU
No último andar do prédio mora o Gabiru, um solitário filósofo, esguio e triste como um enterro, armado da mais formidável penca e da mais estranha sabedoria que Deus tem criado. Nunca viveu. Tudo que existe para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde.
A realidade também não na entende: solitário e pencudo, da vida só se fartou com sofreguidão desta fonte que transborda - o sonho.
Nasceu para sonhar. Tem um suspiro de alívio quando se fecha na mansarda e exclama:- Vou idear!... - Sabe palavras. Teorias, catrapácios, e nunca viu ao pé os rios, os montes, as árvores. Remexe em ideias profundas e nunca encontrou a realidade.
(Os Pobres)
A OUTRA COISA
Há no mundo uma falha. Os poentes são labaredas roxas: resquícios de escarlate, dois, três grandes jactos violetas que se estendem pelo céu - uma maravilha quimérica. A Primavera prolonga-se: superabundância de flores nas árvores, espiritualidade na matéria, como se as árvores fossem morrer. Mais flores, mais poentes onde o ouro e o roxo predominam, mais gritos no mundo, mais vulcões de cores, que pressagiam catástrofes, e um ruido apagado, esquisito, insuportável dentro de nós próprios, que só comparo ao som de uma borboleta esvoaçando contra as paredes de um vaso.
(Húmus)
NAS BERLENGAS
Subo um carreirinho a pique. Sento-me no planalto e olho. Olho, não é bem - trespasso-me. Trespasso-me de cor, de luz, de amplidão. O que aqui existe e domina é o azul do céu e o azul do mar. Bebo-o. Vagueio uns dias ao vento falando só. Viver aqui é viver em pleno céu. É ser nuvem e mar, é ser azul. A vida sobre esta base de granito não tem corpo. A grande rocha está suspensa no vácuo - porque o mar é pó verde muito ténue e a costa pó roxo a diluir-se. Do alto vê-se o cabo Carvoeiro e, mais para o sul, a praia da Consolação, a Ericeira e a praia de João Salgado, e, para o norte, o Baleal, a Foz do Arelho, S. Martinho do Porto e, até onde a vista chega, a ocidental praia lusitana.
(Os Pescadores)
NA SERRA DA ESTRELA
O que mais me impressionou na serra foi o pastor e o cão, ambos isolados,ambos hirsutos, ambos mudos. E depois a cotovia. Diz-se que a cotovia é uma ave de planície: ali se encontram bandos e bandos, sempre à procura de luz. Porque é a luz que as atrai. Desde pequeno que os seus ninhos sem defesa, abertos no chão, onde a fêmea põe alguns ovos com pintinhas cinzentas, me deixam pensativo. Só muito tarde compreendi que esta ave não tem tempo para se preocupar com pequenas coisas - a cotovia tem a paixão da luz e procura evadir-se do planeta. Mal come. Canta, eleva-se planando cada vez mais alto, num canto cada vez mais puro. Até onde? Não sei. Sobe até não poder mais, até se convencer que a luz não se atinge. Bem a procuro no céu: desapareceu a cantar para cair como morta, como um farrapo que cai, quando perde as ilusões.
(Portugal Pequenino)
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