domingo, 27 de maio de 2012

ODE A S. FRANCISCO






"São Francisco pregando aos pássaros"
atribuido a Giotto di Bondone


Cinco rosas no corpo quebradiço
dois pássaros ceguinhos no olhar
- «Meu Senhor e meu Deus:
que eu semeie uma estrela
onde a asa da noite cobrir o luar!»

«Irmã água, irmão Sol»
- Irmão das pedras da vida
milionário de sonhos eternos
peregrino da esmola peregrina,
volta ao Mundo, por favor:
há uma névoa de orvalho em cada alma
e uma lágrima, à espera, em cada esquina.

Ricardo de Saavedra
in «A Voz», 5/10/63

sábado, 19 de maio de 2012

CARTAS PERDIDAS










ANNE PERRIER
Lausanne, 1922


A Cristovam Pavia
 XII

Deixaste aos nossos olhos o caminho
Mas não o vale nem a margem
Onde nos leva a viagem
Nem a uva ou a folhagem
Nem o constelado rio
Do translúcido Estio
Oh! tão eterna a vida

É só um instante abre o vidro!
No comboio da noite
Os meus olhos são flores de margarida


ANNE PERRIER
Grand Prix National de Poésie 2012

domingo, 13 de maio de 2012

ENIGMA



















Folha de papel. Um corpo nu e virgem.
Estendido tentador que se oferece
Nas areias brancas. Nela se descrevem
Todas as palavras para ver-lhe a face.

Uma dura esfinge cálida aparece.
É um alto enigma. Mostra a sua imagem.
Cada viandante passa ao lado e tece
O sentido das palavras na viagem.

Folha de papel. Hieróglifos fatais
Desenhados no deserto pelo vento.
As palavras da esfinge ficarão

Pelo tempo repetidas aos mortais.
Quantos pés tens tu movendo o pensamento ?
Serão quatro ou dois ou três ? Quantos serão ?

Abel da Cunha


Cuadrúpedo en la aurora, alto en el día,
Y con tres pies errando por el vano
Ámbito de la tarde, así veía
La eterna esfinge a su inconstante hermano
El hombre, ...
                           Jorge Luis Borges



sexta-feira, 11 de maio de 2012

ANJO DE PEDRA














L'ANGE DU MERIDIEN
Chartres



No vento que assalta a forte catedral
como um negador a meditar,
sentimo-nos atraídos para ti de repente
mais ternamente pelo teu sorriso:

Anjo a sorrir, ó figura sensível,
com uma boca feita de cem bocas:
não vês então como as nossas horas
te deslizam do quadrante solar

sobre que estão todas as do dia ao mesmo tempo,
igualmente reais, em equilíbrio fundo,
como se todas fossem maduras e ricas ?

Anjo de pedra, que sabes tu do nosso ser ?
E não seguras tu, com face mais ditosa
ainda, talvez, o teu quadrante à noite ?


Rainer Maria Rilke
Trad.: Paulo Quintela

DANÇA DAS HORAS













As horas num vaivém em contratempo
O mesmo ciclo dançam noite e dia;
Os pés rebatem ritmos de folia
Enquanto valsa lento o pensamento.

A vida, João de Deus, é uma nuvem
Que voa alto e ninguém alcança;
Levamos pela mão uma criança
Sempre a sorrir aos sonhos que lhe fogem.

Quantas canções de esperança entoei!
Quantos momentos foram adornados
De engano e fantasia! E sonhei...

Da vida tenho inteira consciência.
Mas do bem e do mal e dos meus fados
Que falem outros sobre a minha ausência.


Abel da Cunha