terça-feira, 26 de junho de 2012

A RAÚL BRANDÃO




RAÚL BRANDÃO (1867-1930)
Pintura de Columbano

"Compreendi que a ternura
é o melhor da vida.
O resto não vale nada."
in O Silêncio e o Lume



Persiste na memória a sombra clara
de um vulto antigo bem familiar
a remoer um sonho uma palavra
que transformava em arte ao pé do lar.

Ia do Alto à Beira num instante
pelos atalhos que encurtavam passos.
Abria-se o portal e o bom gigante
alçava a 'pequenina' nos seus braços.

Não te encontrei. De minha mãe ouvi
que sempre transbordavas de ternura
como a água do mar na Cantareira.

Depois mais tarde lendo percebi
no silêncio e no lume da escritura
que um génio errante andou por Nespereira.

Abel da Cunha
Casa da Beira, Junho de 2012


domingo, 24 de junho de 2012

LIÇÃO DE ANATOMIA







Rembrandt
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp
(1632)

Sonhei um poema por analogia
bem explicado onde coubesse tudo.
Media os pés e definia o modo
de ver a natureza onde me via.

Com duros diamantes escrevia
firmando traços, removendo o estorvo;
das pedras frias retirava o fogo
tocando lira enquanto o mundo ardia.

Num claro escuro o outro eu e mais
lançavam entre si olhares mortais
sobre o real numa comédia d'arte.

Só não se viam pombas nas alturas
que o seu domínio é das ideias puras
e a sua claridade é sem contraste.


Abel da Cunha

sábado, 23 de junho de 2012

CORRESPONDANCES






CHARLES BAUDELAIRE
(Paris 1821-1867)
por Gustave Courbet

La Nature est un temple où de vivant piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent,
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
- Et d'autres, corrompus, riches et triomphants.

Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.


Charles Baudelaire
in Les Fleurs du Mal (Spleen et Idéal)



segunda-feira, 18 de junho de 2012

YESTERDAY

A Paul McCartney
Liverpool, 18 de Junho de 1942

Parece que foi ontem. E setenta
É a tua idade. Como passa o tempo!
Os dias são canções. Como lamento
As cordas que se partem na tormenta!

Perfeita é a arte que sustenta
O peso das paixões. O sentimento
É um rio turvo, apressado ou lento,
Que faz o seu percurso em margem estreita.

São quatro os besouros de uma vida
Batida aos quatro ventos da alegria
Numa febre de ritmos e de cor.

Alguns chegaram já ao grande mar.
Mas tu ainda hoje vais cantar
Uma nova canção de paz e amor.

Abel da Cunha



sábado, 16 de junho de 2012

FERMOSO TEJO









Francisco Rodrigues Lobo
Leiria 1580 - Lisboa 1622


Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.

Francisco Rodrigues Lobo
in Fénix Renascida, I

sábado, 9 de junho de 2012

A LUIS DE CAMOENS













Sin lástima y sin ira el tiempo mella
Las heroicas espadas. Pobre y triste
A tu patria nostálgica volviste,
Oh capitán, para morir en ella

Y con ella. En el mágico desierto
La flor de Portugal se había perdido
Y el áspero español, antes vencido,
Amenazaba su costado abierto.

Quiero saber se aquende la ribera
Última comprendiste humildemente
Que todo lo perdido, el Occidente

Y el Oriente, el acero y la bandera,
Perduraría (ajeno a toda humana
Mutación) en tu Eneida lusitana.

Jorge Luis Borges
in El Hacedor

terça-feira, 5 de junho de 2012

PORTUGAL DESCONHECIDO










                       Ao Ricardo de Saavedra

Em Guimarães podia ler o berço
de Portugal escrito nas muralhas.
Cumpriu mil sonhos. Foram maravilhas
dum heroismo que já não conheço.

A vida do seu povo teve um preço
que resgatou em sangue nas batalhas.
Mas hoje só navega em barcas velhas
sem força de revolta ou recomeço.

A capital do reino foi Lisboa.
Camões morreu. Morreu também Pessoa.
A língua portuguesa era uma vez...

De meio mundo herdado em Tordesilhas
apenas resta um prato de lentilhas.
E o nosso rei agora fala inglês.


Abel da Cunha