segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

VITORINO NEMÉSIO













VITORINO NEMÉSIO
(1901-1978)

 
NOMEIO O MUNDO

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.

In O Verbo e a Morte, 1959

 
POEMA

Venham os nomes tíbios,
O vagar delgado e glúteo dos fonemas,
Coroar delfins de sangue e sal – anfíbios
Sistemas de palavras: os poemas.

E desçam do alto ozone carbogáseos
Conglomerados de significação
A coroar-te, Leda etérea. Traze-os
Tu mesma à doce fala e à imaginação.

De topázios não falo, que carregam
Teus dedos nus de rápidas cintilas,
Nem dos amino-ácidos que os regam

Nem da feliz artrose do teu ombro
No beijo de saliva que titilas
Ao cisne branco, todo pluma e assombro.

In Revista Presença (número especial), 1977

 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

SERENATA




Uma guitarra antiga nos penedos
   Tangida por Virgílio ou por Horácio
   Em ritmo de balada. Ágeis dedos
   A repicar nas doze cordas de aço.

   Cantavam como Hilários! Arremedos
   Em tom bemol com um vibrato lasso
   Até que a Aurora viesse manhã cedo
   Render a lua branca no espaço.

   Os trovador’s chegavam da Lamela
   Dos Gémeos do Brasil de Bugalhós
   Da Bouça Riba d’Ave…  A sua voz

   Batia suavemente nas janelas.
   E a porta já sem trinco ou fechadura
   Abria-se à saudade e à ternura.

   Abel da Cunha

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

LIBERTAÇÃO















Menino doido, olhei em roda, e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
   Era impossível para a minha altura...)

   Como passar o tempo?...E diverti-me
   Desta maneira trágica e segura:
   Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
   Desfiz trapos, arames, serradura...

   Ah, meu menino histérico e precoce!
   Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
   E tens a inquietação da descoberta!

   O menino, por fim, tombou cansado;
   O seu boneco aí jaz esfarelado...
   E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

   José Régio
   in Biografia


   

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

AO PÉ DA LARANJEIRA














Que lindas as laranjas! Sua cor
É o seu próprio nome entre o verde
Das folhas persistentes. Qualquer sede
Em doces gomos morre de sabor.

Que lindas as laranjas! Que fulgor
De sol na sua face! Quem escreve
Aqui no duro tronco um nome breve
Que permanece enquanto o tempo for?

E que memórias vão neste lugar
Levadas no correr da mesma água
Chegando até ao fundo da raiz!

Também meu nome inteiro irei gravar
Com fio de aço que não mais se apaga
No pé da laranjeira: na matriz.

Abel da Cunha

RICARDO III















RICARDO III
segundo Shakespeare
 
Nas casas de Lencastre e de Iorque
Andou acesa a guerra entre as rosas;
De quem havia atrás de cada morte
A Torre escura não mostrava as provas.
Corria sangue azul de estirpe nobre
   Afeita a nobres gestas nobres causas.
   Enfraqueceu o reino e um duque torpe
   Subiu ao trono com jogadas falsas.
   Estive em Warwick. Assisti ao drama
   Do bardo do Avon bem imaginado.
   Jogava a torre o bispo o rei a dama
   Em ombros de peões vis aclamado.
        Mas no lance fatal nenhum vassalo
      Quis apostar no reino o seu cavalo.

Abel da Cunha

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

NA EIRA

 

 
 
 
 
José Malhoa
"Milho ao Sol"
 
 
 
 
 
Há quanto tempo o milho está na eira!
Depois das estações não anda o rodo
A resguardar no alpendre o ouro todo
No fim de tanta tarde soalheira?
 
Já não se ergue o malho. A canseira
Não segue regular o velho modo
Em que o suor se vê em cada poro
Como a água fluindo na regueira.
 
Já não há espigas nem morrão nem barbas
Nem milho rei das noites desfolhadas
Ao som dos beijos e da concertina.
 
Nem desce da colina o bom moleiro
Que vem trocar os grãos do meu celeiro
Pela brancura fina da farinha.

 
Abel da Cunha