segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A TANGERINEIRA














Era em Dezembro. A tangerineira
Corava já a fruta em verde taça.
Era em Dezembro. Como o tempo passa!
Quase ninguém se vê à minha beira.

Não era alta. Da sua copa larga
Caía a sombra amena no verão.
Todos em roda. Abria-se o melão
Com faca fina sobre uma toalha.

Miragem de saudade! Havia danças…
Armava-se um baloiço... E que alegria
O riso prateado das crianças!

Curvou-se ao pé do muro degastada.
Não deu mais fruto. A sombra lhe fugia…
Foi nesse inverno lume cinza e nada.

Abel da Cunha

domingo, 3 de agosto de 2014

VINCENT VAN GOGH
















STARRY NIGHT

A noite é como um nó que se desata
Mostrando um avental de maravilhas!

Abel da Cunha

quarta-feira, 30 de julho de 2014

INTERNATO




















INTERNATO
Anexo ao Liceu de Guimarães
(Convento de Santa Clara)

Se regressar ao velho Internato,
Vou descansar sentado só por fora
Olhando as flores que ao pé da porta
Estão sorrindo como num retrato.

Nada do que passei ato ou desato
Nem do relógio atrasarei a hora
Para emendar os fios dessa história
Que para sempre dá o tempo exato.

Entre paredes altas com janelas
Vigiava o espaço debruçado nelas
À espera de um tapete voador…

Foi tão morosa aquela tenra idade!
Talhada em pedra Santa Clara há de
Permanecer no mesmo resplendor.

Abel da Cunha
Imagens www;
Guimarães: Convento de Santa Clara

domingo, 27 de julho de 2014

LIVRO SEXTO











LIVRO SEXTO

Abri hoje o Livro Sexto
Há tanto tempo fechado;
Fechá-lo foi por desleixo,
Por amor fui procurá-lo.

Abel da Cunha
Porto, 02-07-2014


O POEMA

O poema me levará no tempo
Quando eu não for a habitação do tempo
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto, 1962

OS TRÊS SANTOS POPULARES














TRÊS ORAÇÕES (QUADRAS)

SANTO ANTÓNIO, a minha bilha
Quebrou todos os pecados;
Será grande maravilha
Nunca mais os ver colados.

SÃO JOÃO, essa fogueira
É um inferno de brincar;
Mas à outra verdadeira
Não me deixes lá chegar.

SÃO PEDRO, na hora incerta
Uma coisa só preciso:
Que tenhas a porta aberta
Para entrar no Paraíso.

Abel Cunha
Imagem:
Santo António (Bordalo Pinheiro)

SENHORAS DO MONTE














Ao Frassino Machado 

Senhoras do Monte
Raminho de abrótegas
Nós vimos de longe
Abri-nos as portas.


Só vamos embora
Lá pela tardinha
Gozaremos hoje
Vossa companhia.


Se fordes servidas
Sentai-vos connosco
Das nossas merendas
Servi-vos com gosto.


Iremos mais leves
De regresso a casa
Que mal se levarmos
Um greiro na asa?


São João Baptista
A todas as horas
Que bem que vos fica
Guardar as Senhoras!

Abel da Cunha

A FONTE DE SEZIM














De Sezim recordo a fonte
Onde a frescura bebia
Ao dobrar aquele monte
Pelo calor de algum dia.

Às vezes tão apressado
A fonte nem sequer via
Mas agora sou lembrado
Da água que ali corria.

Quando muita transbordava
Cobrindo todo o caminho
Era ao colo que passava
Sendo ainda pequenino.

Que saudade dessa hera
A vestir de verde os muros
Remendos de primavera
Dos nossos dias futuros.

Abel da Cunha
Foto: Recanto da Casa de Sezim

sexta-feira, 4 de julho de 2014

AMIGOS















João Elias tinha uma carteira
Ao lado, no Colégio de S. Carlos.
Um veio ter ao Alto, o outro à Beira:
Grandes amigos, sentimentos raros.

Viviam perto com os seus amores:
Raul tinha Angelina e João, Emília.
Em seu redor havia sempre flores
Que partilhavam como de família.

Cantaram ao granito nas pedreiras,
Serraram grossas vigas de eucalipto,
Minaram água, semearam milho,...

O mesmo lume ardia nas lareiras:
No Alto, para acrisolar um livro,
Na Beira, para enternecer um filho.

Abel da Cunha 
Imagens:
A Casa da Beira e a Casa do Alto


KARINGANA
















KARINGANA WA KARINGANA
(Era uma vez…)

Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
— Karingana ua karingana!-
é que faz o poeta sentir-se
gente
E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que pode ser.
— Karingana!

José Craveirinha (1922-2003)
Pintura de Roberto Chichorro

terça-feira, 24 de junho de 2014

Ó MEU SÃO JOÃO






SÃO JOÃO SANTO BONITO
Bem bonito que ele é
Com os seus caracóis de oiro
E o seu cordeirinho ao pé.
(Popular)


SONETILHO

Na cruz do tempo, dia a dia,
A minha vida aonde vai?
Abano a árvore: - a alegria
É um fruto verde que não cai.

Cantam as fontes na espessura
Com vozes de oiro e de cristal,
Que a minha sede em vão procura
De serra em serra e vale em vale.

Sou português e pegureiro
Dum sonho só, um só cordeiro,
O meu cordeiro de São João.

E como os lobos andam danados
Por esses montes e descampados,
Levo-o guardado no coração.

António de Sousa

Imagem acima: 
Murillo, São João Menino

quarta-feira, 21 de maio de 2014

À MÃE














Deste-me leite e mel. Quanta doçura
Havia em teu beijar! O teu regaço
Abria-se em segredos de ternura
E nunca se fechava de cansaço.

O berço pequenino era de pinho
Com lençóis brancos de cambraia fina
Não tinha prata ou oiro mas carinho
Da preciosa fada que destina.

Às vezes eu fugia pra brincar
Nas margens dos teus olhos vigilantes
E logo ouvia a tua voz chamar.

Agora pelas nuvens inconstantes
Meus olhos andam tristes a penar
A ver se me procuras como dantes.

Abel da Cunha

Imagem: Pablo Picasso, Maternidade

terça-feira, 6 de maio de 2014

MÍSTICO MAIO














A música sagrada era tudo
O que o silêncio lhe podia dar;
A natureza amena e o vento mudo
Cobriam-no de sono e de sonhar.

Da flauta a melodia modulava
Por entre giestas fulvas sem ruido;
Era de encanto que transfigurava
O monte verde em Maio reflorido.

De amor divino quase morreria
Se as setas de Diana o atingissem
Num silvo agudo em cálidas feridas!

Mas desse fauno a força nasceria
Em todos os sentidos se viessem
As ninfas mais humanas distraídas!

Abel da Cunha

Imagem (www)
Pál Szinyei Merse, Fauno e Ninfa

domingo, 13 de abril de 2014

AO PORTAL











Partir é sempre adeus sempre saudade.
É leve o lenço de um adeus que acena.
Saudade é de quem chega e nunca sabe
Se o tempo que lhe resta vale a pena.

Ecoam vozes no portal de tábuas
Desfiguradas. Quantos peregrinos
Por terra firme ou por incertas águas
Saíram dele para os seus destinos?!

Passado o cabo dos trabalhos trazem
Florinhas entre as dobras da bagagem
Que a sorte alguma vez deixou cortar.

Para quem parte ou chega as portas são
Esperança enquanto há vida. Depois não.
Depois não há mais tempo a destinar.


Abel da Cunha

sexta-feira, 21 de março de 2014

POESIA












O lírico segredo
Por ninguém desvendado
Na manhã de neblina
Deixá-lo ir assim...
Eu fico livre e calmo,
Sem amor, sem saudade...
O peso das palavras
Evolou-se... Neblina...
E a poesia nasce
Como se fosse música...

Cristovam Pavia
in Poesia

BRANCURA











Fala a musa dos píncaros

Dice ela:
- Baixarei ós vales,
quero ver as cerdeiras
coa airosa pompa das froriñas brancas,
mimos da primavera…

E indócil xenio da montaña altiva,
arrogante, contesta:
- Nin armiños, nin frores, nin escumas;
si fala Dios lles dera
ós seixos albos da fragosa encosta,
e á mística azucena,
acordes, oh insensata, gritariam:
brancura a das folerpas!

A. Noriega Varela
in Do Ermo

domingo, 2 de março de 2014

ADEUS, Ó PORTO

















Adeus, ó Porto adeus; fica-te embora,
Que eu já não posso mais; porque me cansa
Tanto chá, tanto Whist, tanta dança,
E tanta cousa mais que calo agora.

Não era há pouco assim: tudo empiora,
O bem se acaba, o mal raízes lança;
E tem-se feito em tudo tal mudança,
Que até por novo estilo se namora.

Adeus, pois: porque o resto de meus dias
Quero dar às lições dos desenganos
Sempre saudáveis, posto que tardias.

Adeus casas de brinco; adeus enganos;
Chichisbéus, Excelências, Senhorias;
Adeus Ninfas gentis, que fazeis anos.

Paulino António Cabral de Vasconcellos
(Abade de Jazente)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

FLOR DE OUTONO














No malmequer da sorte dizes não
A cada pétala que é desfolhada
Palpitas sempre alguma maldição
Na roda dos teus dias malfadada.

Repara e vê na mágica ilusão
Do canto infantil dessa balada
Que ainda é cedo para teres na mão
Um bem-me-quer e um sim na tua fala.

Não fiques magoado no abandono
Da flor que asperge o teu casaco antigo
Com um perfume pérfido de sono.

Não feches desditoso o teu postigo
Há floreados típicos do outono
Que ficariam muito bem contigo.

Abel da Cunha

Imagem: Escultura de C.M.Greenlee

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

NA PÁSCOA









Ao poeta Frassino Machado



Os ovos pela Páscoa eram pintados
De várias cores em sinal de festa.
Com pão-de-ló, amêndoas, rebuçados,
Vieram meia dúzia numa cesta.

A guardiã então mostrou a prenda
Desembrulhando as peças da caçada
À sombra do cruzeiro. Que merenda
Foi nessa tarde ali saboreada!

Num pano sobre o monte da pedreira
Que bem se combinava a cor dos ovos
Com feldspato e quartzo à mistura!

Por trás do horizonte em Nespereira
Brincavam dois irmãos ainda novos
Olhando o fogo em lágrimas na altura.

Abel da Cunha



EPÍGRAFE












Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som  de água ou de bronze e uma sombra que passa...

Eugénio de Castro

In A Sombra do Quadrante
Imagem: Dali, Relógio derretido

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

TEBAIDA














Descalço e pesaroso um velho monge
Com hábitos e gestos inaudíveis …
Em volta da cabeça tão sensíveis
Arcadas da coroa… Céu ao longe!

Os anjos vinham-lhe mimar o corpo
Descendo as nuvens… seres intangíveis;
Traziam o maná e as codornizes
Que Deus lhe destinava. Boca de ouro!

Tinha clamado quantas profecias
Lhe foram cometidas. Os seus dias
Agora eram desertos de silêncio.

Dorido da memória... Vagueava
Quebrado dos cilícios que levava
Por entre as palmas que batia o vento.

Abel da Cunha

Imagem (www)
René Magritte

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

ANO NOVO 2014




















[2014]

Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!

FERNANDO PESSOA
in Ode Triunfal