quarta-feira, 25 de julho de 2012

SONETO DA MUSA - I









Pedro Lyra
Fortaleza (Brasil) - 1945


Poeta
          minha cria
                             meu amante
meu deus
                  minha criança
                                          meu capricho
como estás enganado.
                                    Eu sou a Musa:
não tenho e não preciso de poder
(excepto aquele que me destinaste
de te encantar em vez de te oprimir).

Sou a motivação
                             a liberdade
a fonte da beleza
                             isto é
                                        da vida.

Te dou a poesia: que mais falta?

Se fosse necessário
                               inventaria
mas ela é a razão do teu nascer
o bastante a cumprir a tua missão.

Ela que dê-te o mais:
                                   agora segue.

Em troca só te cobro o teu amor.


Pedro Lyra
in Musa Lusa

segunda-feira, 23 de julho de 2012

NO CABO CARVOEIRO






A Nau dos Corvos
no Cabo Carvoeiro




Em frente via o grande mar salgado
e nas marés a força do destino;
a vara que trazia do caminho
não florescia mais naquele Cabo.

O mar não foi aberto nem fechado
ao estender o braço peregrino;
abandonado e sem sinal divino
pousei no chão inerte o meu cajado.

De pés e mãos cravado num rochedo
ou numa cruz de pedra enegrecida,
que barco levaria longe o medo ?

E as ondas agitadas, numerosas,
batendo na aventura ali perdida,
lançavam pelo ar espuma e rosas.


Abel da Cunha

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O SEMEADOR











"O Semeador"
Jean-François MILLET (1814-1875)


Palavras são sementes de grão puro
a semear no campo de um poema;
quer seja em boa terra ou num chão duro,
quer entre pedras bravas, vale a pena.

Deixa que o tempo tenha o seu pousio,
inconsciente e fundo e insensível;
no caos da inspiração tudo é tardio
a responder à senha do invisível.

Rompe a semente a terra e faz-se erva
que se levanta ao céu em caule forte
e com flores de promessa o tempo alegra.

No fim virá o fruto e as mãos da sorte
o guardarão de toda a fome avara
até que alguém o colha ou venha a morte.


Abel da Cunha

terça-feira, 17 de julho de 2012

CENA INFANTIL










 Juan Miró (1893-1983)


                       Para o André

Estendido na toalha, o peito
a cheirar a talco e alfazema,
lavadinho como num poema
de palavras inda sem conceito,

alargando os braços, num trejeito
infantil sobre a cama pequena
(a manhã iluminava a cena),
disse à mãe, sorrindo satisfeito:

- Morri, põe-me na parede agora
como está Jesus ali diante.
Respondeu-lhe a mãe, em seu juizo:

- Não te posso segurar, meu filho,
cairias logo num instante.
- Podes, podes, põe-me fita-cola.

Abel da Cunha

quinta-feira, 12 de julho de 2012

À CIÊNCIA






Edgar Allan Poe
(Boston 1809-Baltimore 1849)


Ciência, ó filha do Tempo Velho!
Que, de olhos coruscantes, tudo espreitas,
Porque rasgas ao poeta o amplo peito,
Abutre de asa rude que se engelha?

Como te pode amar, crer-te avisada,
Que o não deixaste andar, errante, ao vento,
Buscando as jóias que há no firmamento
Ainda que o singrasse de asa ousada?

Diana escorraçaste da quadriga,
Do bosque a Hamadríade (fugindo
Ela a abrigar-se em estrela mais amiga),

À Náiade tiraste a onda cava,
Ao elfo o prado, e a mim o tamarindo
Em cuja sombra eu no Verão sonhava.

EDGAR ALLAN POE
in The Raven and Other Poems
Tradução: Margarida Vale de Gato

terça-feira, 10 de julho de 2012

A VELHA OLIVEIRA







Nuno Dempster
(n. 1944)


Que te não angustie a oliveira anciã
já quase apenas tronco, quase
um espigão de escarpa fóssil.
Está ali no vale para ainda
podermos vê-la, olhando-a,
calculando-lhe a idade em séculos,
e pensarmos em quantos como nós
por ela já passaram e se foram
e nas mãos que de início a seguravam,
enraizando à terra a eternidade.

Nuno Dempster
in Elegias de Cronos



ODA A LA TRISTEZA






Pablo NERUDA
(1904 - 1973)





TRISTEZA, escarabajo
de siete patas rotas,
huevo de telaraña,
rata descalabrada,
esqueleto de perra:
Aquí no entras.
No pasas.
Ándate.
Vuelve
al sur con tu paraguas,
vuelve
al norte con tu dientes de culebra.
Aquí vive un poeta.
La tristeza no puede
entrar por estas puertas.
Por las ventanas
entra el aire del mundo,
las rojas rosas nuevas,
las banderas bordadas
del pueblo y sus victorias.
No puedes.
Aquí no entras.
Sacude
tus alas de murciélago,
yo pisaré las plumas
que caen de tu manto,
yo barreré los trozos
de tu cadáver hacia
las cuatro puntas del viento,
yo te torceré el cuello,
te coseré los ojos,
cortaré tu mortaja
y enterraré, tristeza, tus huesos roedores
bajo la primavera de un manzano.

Pablo Neruda
in Odas elementales

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A FRANÇOIS VILLON







François Villon (~1431-1463~)
Pisanello (1395-1455)
Fresco da Igreja de Santa Anastácia
em Verona


A quantos vivos deixarei as rosas
colhidas pelos becos de Paris
em velhas aventuras amorosas?
Já fui quase enforcado por um triz.

Toadas tristes. No agitar dos ramos
dançavam cidadãos em carne e osso
danados de prelados e tiranos.
Assim os contemplava pesaroso.

Às coisas inda virgens consagradas
mostrei caminhos invoquei sentidos.
Palavras bibelots de tempos idos!

Rimei dois testamentos fiz baladas.
Cingi ao meu pescoço um laço lírico
mas só quando do mundo quis partir.

Abel da Cunha

sábado, 7 de julho de 2012

NESTE LEITO DE AUSÊNCIA









Ferreira Gullar (1930-)
Prémio Camões 2010


Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce em mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho - o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.


Ferreira Gullar
Sete poemas portugueses

VERSO LIVRE









Giorgio de Chirico
Incerteza do Poeta


Já não se escrevem rimas consoantes
e os metros não encontram que medir;
os cânones que eram dominantes
ficaram em volumes por abrir.

O verso é livre. Não se escande a vida
em longa ou breve. No virar do verso
ouvir o som do outro numa sílaba
não é do estilo. Tudo é diverso.

O ovo de Colombo deu um tombo
e alguém o foi de pronto levantar
abrindo a boca todos num assombro.

Mas tu, poeta, não irás parar
que a moda passa como passa a sombra
e outras modas podem esperar.


Abel da Cunha

quinta-feira, 5 de julho de 2012

AO LEITOR









Giorgio Vasary (1544)
Retrato de Seis Poetas Toscanos


É tua a Soledade e Outros Poemas
que a vida foi trazendo à fantasia;
com eles esqueci as minhas penas,
que possam eles dar-te as alegrias.

A forma e a substância são pequenas
questões que as letras dão à teoria.
Só a verdade conta. O resto apenas
é cinza literária sem valia.

Motivos simples cabem num Soneto.
Tragédias e Comédias não prometo
nem Épicas tormentas de mar alto.

Pintei a Natureza e o Sentimento
como os poetas do Renascimento.
Que seja parecido o meu retrato.


Abel da Cunha