sexta-feira, 6 de novembro de 2009

HORA XXV






Mostrador
do Big Ben



Contei todas as horas que bateram
Na minha alta torre de marfim.
Tratei dos meus botões nenhuns sobraram
Para tratar dos outros só de mim.

Que fiz da liberdade em que nasci
Sozinho e nú ? De verso em verso
A minha dimensão em vão medi
Medindo em vão a vida do Universo.

Sou rei de um sol que dentro de mim brilha
Mas sempre a noite mais escura encontro
Na formação redonda de uma ilha.

Lá fora um mundo revoltado enfrento
Descalço e rude como na Bastilha
Entrando de rompante por mim dentro.

Abel da Cunha

sábado, 29 de agosto de 2009

SOMBRA DAS HORAS


O sol já descendente rasga o véu da tarde
Deixando ver a sombra que define a altura
Do corpo prolongado que no chão se perde.
Em cinza se dilui o esboço da figura…

E posso me reconhecer nessa visão
Que vem desde o alvor do dia lentamente
Vestida de silêncio angústia e solidão
Crescendo hora a hora muda e persistente…

É um ressentimento verde cor de pinho
Que dorme nos meus braços - terno abandono -
Enquanto a luz solar prossegue o seu caminho
Nesta estação deitada e morna do Outono.

Não há na vida nada mais que me deleite
Quando essa sombra ao longe vai beijar a noite.


Abel da Cunha
Foto: Marta Cunha

quinta-feira, 23 de julho de 2009

MEIO-DIA




Meio-dia. Doze badaladas
Como doze labaredas dão.
Dão o tempo ao lento coração
Numa dúzia de horas magoadas.

Meio-dia. É meio do verão.
Não há sombras frescas nas estradas
Pela aldeia as casas são fechadas
E nas ruas mora a solidão.

Meio-dia. Rangem os insectos.
Os amantes com os membros lassos
Suspendem o ritmo dos abraços
Na ternura expressa dos afectos.

Meio-dia. O sangue arde nas veias
A sonhar nas ondas das sereias.

Abel Cunha
Foto: Abel Cunha - Flor de cacto

quinta-feira, 9 de abril de 2009

DANÇA DAS HORAS


Hora de prima e outras horas vão
Dançando pelo tempo lentamente
Embalam o fervor adolescente
Num berço sonolento de oração.

A noite acorda ao toque de matinas
Abrindo celas de silêncio denso
No peito ardem corações de incenso
Enchendo o ar de nuvens peregrinas.

Antífonas e salmos alternados
Ressoam pelas góticas arcadas
Num canto chão de mística ansiedade.

Agora - breviários encerrados –
As vozes dos coristas são caladas
Dançando nos vitrais a claridade.

Abel Cunha
Foto: Dali - Persistência da memória



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Salvador Dali
Porque o tempo não cabia nos esquemas fechados
- o tempo, moldura do desassossego -
havia que sacrificar os relógios sobre as árvores
como condenados pendulares por reincidentes heresias,
dar-lhes uma inconsistência gelatinosa, um murro
no cérebro onde o tic-tac fere a calma.


Sabias que bastava um instante de génio ou de loucura,
uma combinação conspirativa de tintas e visões
para que toda a engrenagem pasmasse e sofresse
o hematoma lilás das tuas fúrias.


Porque o tempo não cabia nas amplas categorias
da tua ontologia — lúcido paradigma do absurdo
sentido na lentidão da tela contra a espera.


E assim teus relógios se derramaram
num ritmo mole alheio ao pulso,
incapazes de um tempo inteiro e firme
contra a pressa absurda dos utentes.

Cláudio Lima – 02.02.99

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

ARTEFACTOS

É preciso abrir bem os olhos para os prodígios que nos rodeiam.
Pegar nos objectos e descobrir os tesouros que a imaginação supõe.
Realçar-lhes as formas sedutoras da beleza e despertar o desejo de as ter.
Todos somos alquimistas para tentar o ouro da nossa medida.

A Marta faz isso, com naturalidade.
Aproveita artes antigas (origami) e
transforma-se em encantadora de serpentes e de pássaros,
estende correntes de prata e nodifica cordas,
dedilha contas e metais,
criando artefactos que nos ficam bem.

Alumia os materiais adestrados com o génio da sua lâmpada.

Os origamis e espanta-espíritos são deslumbrantes.
Os brincos, os anéis, os colares, as pulseiras, os alfinetes, os medalhões, os ganchos dos cabelos, são excelentes adereços para enfeitar o nosso dia-a-dia de actores no teatro social.
Só quem os não puder usar!

A Marta apresenta os artefactos no seu blogue:
(DKHorse. Blogspot.com)
“People say that I’m a dark horse, because of all that I can do”.

Vale a pena visitar este blogue.

Abel Cunha

domingo, 1 de fevereiro de 2009

O CORREIO

Para o Manel
Tanto frio vai lá fora.
Tanto frio… Nem me lembro
Se já é Janeiro agora
Ou se ainda é Dezembro.
Batem à porta. – Quem ousa
Vir hoje cantar janeiras?
- São notícias derradeiras
Feitas de verso e de prosa.
Fui abrir. Era o correio.
Entre cartas e papel
Vinham dois livros no meio
Assinados : Manuel.
Não sei como, num repente,
O tempo ficou mais quente.

Abel Cunha30.01.2009

Foto: Rosa Ribeiro - gelo em Pombal de Ansiães.

Nota: Os dois livros, remetidos pelo Manel (Cláudio Lima), eram Outrora Dezembro e Contos Baldios. O poema, abaixo transcrito, é do livro Outrora Dezembro.


Outrora Dezembro

Inventamos Dezembro no aconchego dos mortos
revolvendo uma brasa viva de memória;
a brasa queima as raízes do passado:
belos coletes e fartos bigodes cerzidos
na galeria rútila das cinzas.

Um aroma de musgo entranha-se nas pedras,
as lápides tumulares do nosso sonho.
E assim este Dezembro vai crescendo
em espiral de neve incandescente.

Minha avó tricotando a santidade,
meu avô flauteando estrofes de bronquite
e um brinquedo mágico desfeito
em sádica autópsia, já longe,
quando um trovão rolava entre os meus braços
as fonéticas iras do Senhor. Então orava;
juntava os pecados todos numa lágrima
e jurava.
Jurava ao pé do lume estarrecido.
Eriçado Dezembro fustigava os tectos,
uma pinha benta ardia sob os olhos
pávidos, a espuma do céu caindo aos urros
sobre a fé intimidada dos adultos.

E assim recebi o ósculo do medo
dos lúgubres vendavais. Era Dezembro,
havia manchas de sombra em cada rosto.

Cláudio Lima

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

DESERTO


Perdi o meu relógio no deserto
Que dava horas pelo meridiano
Agora tenho um coração humano
Que bate bate mas não bate certo.

Perdi a bússula que dava o rumo
E os caminhos rectos indicava
Tinha tudo pois tudo encontrava
Agora vejo tudo envolto em fumo…

É noite no deserto. Fui deitar-me
À beira duma duna já desfeita
Coberto pela areia que havia.

É noite no deserto. Vou perder-me
Se alguma estrela não vier perfeita
Alumiar a noite até ser dia.

Abel Cunha

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

PARA A MARTA













A toda a gente, alto, disse um dia:
Chegou a Marta! De tanta alegria,
Encheram-se de lágrimas os olhos,
Como acontece quando nascem filhos.

Todos disseram: seja bem nascida,
Que boa estrela lhe oriente a vida!
(É muito certo aquilo que dizeis:
Nasceu na Lapa, em noite de Reis.)

Quando pequena enchi-a de carinhos,
Andou comigo por breves caminhos.
Levei-a ao colo, se havia lama,
Contei-lhe histórias à beira da cama.

Agora é grande e o mundo é pequeno:
Não há papões ou bruxas com veneno.



Abel Cunha