segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

FLOR DE OUTONO














No malmequer da sorte dizes não
A cada pétala que é desfolhada
Palpitas sempre alguma maldição
Na roda dos teus dias malfadada.

Repara e vê na mágica ilusão
Do canto infantil dessa balada
Que ainda é cedo para teres na mão
Um bem-me-quer e um sim na tua fala.

Não fiques magoado no abandono
Da flor que asperge o teu casaco antigo
Com um perfume pérfido de sono.

Não feches desditoso o teu postigo
Há floreados típicos do outono
Que ficariam muito bem contigo.

Abel da Cunha

Imagem: Escultura de C.M.Greenlee

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

NA PÁSCOA









Ao poeta Frassino Machado



Os ovos pela Páscoa eram pintados
De várias cores em sinal de festa.
Com pão-de-ló, amêndoas, rebuçados,
Vieram meia dúzia numa cesta.

A guardiã então mostrou a prenda
Desembrulhando as peças da caçada
À sombra do cruzeiro. Que merenda
Foi nessa tarde ali saboreada!

Num pano sobre o monte da pedreira
Que bem se combinava a cor dos ovos
Com feldspato e quartzo à mistura!

Por trás do horizonte em Nespereira
Brincavam dois irmãos ainda novos
Olhando o fogo em lágrimas na altura.

Abel da Cunha



EPÍGRAFE












Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som  de água ou de bronze e uma sombra que passa...

Eugénio de Castro

In A Sombra do Quadrante
Imagem: Dali, Relógio derretido

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

TEBAIDA














Descalço e pesaroso um velho monge
Com hábitos e gestos inaudíveis …
Em volta da cabeça tão sensíveis
Arcadas da coroa… Céu ao longe!

Os anjos vinham-lhe mimar o corpo
Descendo as nuvens… seres intangíveis;
Traziam o maná e as codornizes
Que Deus lhe destinava. Boca de ouro!

Tinha clamado quantas profecias
Lhe foram cometidas. Os seus dias
Agora eram desertos de silêncio.

Dorido da memória... Vagueava
Quebrado dos cilícios que levava
Por entre as palmas que batia o vento.

Abel da Cunha

Imagem (www)
René Magritte