quarta-feira, 30 de julho de 2014

INTERNATO




















INTERNATO
Anexo ao Liceu de Guimarães
(Convento de Santa Clara)

Se regressar ao velho Internato,
Vou descansar sentado só por fora
Olhando as flores que ao pé da porta
Estão sorrindo como num retrato.

Nada do que passei ato ou desato
Nem do relógio atrasarei a hora
Para emendar os fios dessa história
Que para sempre dá o tempo exato.

Entre paredes altas com janelas
Vigiava o espaço debruçado nelas
À espera de um tapete voador…

Foi tão morosa aquela tenra idade!
Talhada em pedra Santa Clara há de
Permanecer no mesmo resplendor.

Abel da Cunha
Imagens www;
Guimarães: Convento de Santa Clara

domingo, 27 de julho de 2014

LIVRO SEXTO











LIVRO SEXTO

Abri hoje o Livro Sexto
Há tanto tempo fechado;
Fechá-lo foi por desleixo,
Por amor fui procurá-lo.

Abel da Cunha
Porto, 02-07-2014


O POEMA

O poema me levará no tempo
Quando eu não for a habitação do tempo
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto, 1962

OS TRÊS SANTOS POPULARES














TRÊS ORAÇÕES (QUADRAS)

SANTO ANTÓNIO, a minha bilha
Quebrou todos os pecados;
Será grande maravilha
Nunca mais os ver colados.

SÃO JOÃO, essa fogueira
É um inferno de brincar;
Mas à outra verdadeira
Não me deixes lá chegar.

SÃO PEDRO, na hora incerta
Uma coisa só preciso:
Que tenhas a porta aberta
Para entrar no Paraíso.

Abel Cunha
Imagem:
Santo António (Bordalo Pinheiro)

SENHORAS DO MONTE














Ao Frassino Machado 

Senhoras do Monte
Raminho de abrótegas
Nós vimos de longe
Abri-nos as portas.


Só vamos embora
Lá pela tardinha
Gozaremos hoje
Vossa companhia.


Se fordes servidas
Sentai-vos connosco
Das nossas merendas
Servi-vos com gosto.


Iremos mais leves
De regresso a casa
Que mal se levarmos
Um greiro na asa?


São João Baptista
A todas as horas
Que bem que vos fica
Guardar as Senhoras!

Abel da Cunha

A FONTE DE SEZIM














De Sezim recordo a fonte
Onde a frescura bebia
Ao dobrar aquele monte
Pelo calor de algum dia.

Às vezes tão apressado
A fonte nem sequer via
Mas agora sou lembrado
Da água que ali corria.

Quando muita transbordava
Cobrindo todo o caminho
Era ao colo que passava
Sendo ainda pequenino.

Que saudade dessa hera
A vestir de verde os muros
Remendos de primavera
Dos nossos dias futuros.

Abel da Cunha
Foto: Recanto da Casa de Sezim

sexta-feira, 4 de julho de 2014

AMIGOS















João Elias tinha uma carteira
Ao lado, no Colégio de S. Carlos.
Um veio ter ao Alto, o outro à Beira:
Grandes amigos, sentimentos raros.

Viviam perto com os seus amores:
Raul tinha Angelina e João, Emília.
Em seu redor havia sempre flores
Que partilhavam como de família.

Cantaram ao granito nas pedreiras,
Serraram grossas vigas de eucalipto,
Minaram água, semearam milho,...

O mesmo lume ardia nas lareiras:
No Alto, para acrisolar um livro,
Na Beira, para enternecer um filho.

Abel da Cunha 
Imagens:
A Casa da Beira e a Casa do Alto


KARINGANA
















KARINGANA WA KARINGANA
(Era uma vez…)

Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
— Karingana ua karingana!-
é que faz o poeta sentir-se
gente
E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que pode ser.
— Karingana!

José Craveirinha (1922-2003)
Pintura de Roberto Chichorro