Fernão de Magalhães Gonçalves (1943-1988)
nasceu em Jou,
no concelho de Murça,
Trás-os-Montes.
STABAT MATER I
Um dia (talvez um dia só) eu fui menino
era de tarde e havia sol (há sempre sol na
memória de ver-te a cada instante
vigilante aos
prodígios do meu próprio destino)
e eu joguei no Largo à minha idade
aos arcos e aos piões aos
polícias e ladrões e
à pura liberdade
e não voltei ao Largo hoje
resta a árvore bravia que me fiz
o caule que construiu a sua história
mudando a tua memória no
ar que respira e na raiz.
STABAT MATER II
Um dia deixaste de poisar os olhos sobre os objectos
próximos e demorava-los nos cantos altos e nas junturas
do telhado.
os teus gestos de levar o lenço às pálpebras
esvaziavam-se
da consciência do momento em que o xaile negro te caía
de um ombro e ias mergulhar-te na escuridão do quarto.
nas rugas da tua boca desenhava-se para sempre a atitude
de presenciar aquela hora em que se cumpriu a tua
solidão.
um dia deixaste de ir e vir da cozinha para o quarto dele
com esse andar pesado e atento de quem conhecia cada
tábua
do soalho e a calcava com pressão diferente.
um dia desceste os quatro degraus da varanda
antiga e foste chorar voltada para a parede branca.
rio de silêncio sem margens sem origem.
VIZNAR
Poema dedicado a Federico Garcia Lorca
E quando eu chegar ao fim das
minhas angústias e desejos e o
tempo se fechar e o sol se enfim puser
cobri-me com terra e ervas areia algumas
flores no meio de um caminho
que restem da memória que ficou
as pegadas casuais
breves e desiguais de
ali ter passado alguém que ainda não voltou.
Fernão de Magalhães Gonçalves
(in Memória Imperfeita)
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