domingo, 13 de abril de 2014

AO PORTAL











Partir é sempre adeus sempre saudade.
É leve o lenço de um adeus que acena.
Saudade é de quem chega e nunca sabe
Se o tempo que lhe resta vale a pena.

Ecoam vozes no portal de tábuas
Desfiguradas. Quantos peregrinos
Por terra firme ou por incertas águas
Saíram dele para os seus destinos?!

Passado o cabo dos trabalhos trazem
Florinhas entre as dobras da bagagem
Que a sorte alguma vez deixou cortar.

Para quem parte ou chega as portas são
Esperança enquanto há vida. Depois não.
Depois não há mais tempo a destinar.


Abel da Cunha

sexta-feira, 21 de março de 2014

POESIA












O lírico segredo
Por ninguém desvendado
Na manhã de neblina
Deixá-lo ir assim...
Eu fico livre e calmo,
Sem amor, sem saudade...
O peso das palavras
Evolou-se... Neblina...
E a poesia nasce
Como se fosse música...

Cristovam Pavia
in Poesia

BRANCURA











Fala a musa dos píncaros

Dice ela:
- Baixarei ós vales,
quero ver as cerdeiras
coa airosa pompa das froriñas brancas,
mimos da primavera…

E indócil xenio da montaña altiva,
arrogante, contesta:
- Nin armiños, nin frores, nin escumas;
si fala Dios lles dera
ós seixos albos da fragosa encosta,
e á mística azucena,
acordes, oh insensata, gritariam:
brancura a das folerpas!

A. Noriega Varela
in Do Ermo

domingo, 2 de março de 2014

ADEUS, Ó PORTO

















Adeus, ó Porto adeus; fica-te embora,
Que eu já não posso mais; porque me cansa
Tanto chá, tanto Whist, tanta dança,
E tanta cousa mais que calo agora.

Não era há pouco assim: tudo empiora,
O bem se acaba, o mal raízes lança;
E tem-se feito em tudo tal mudança,
Que até por novo estilo se namora.

Adeus, pois: porque o resto de meus dias
Quero dar às lições dos desenganos
Sempre saudáveis, posto que tardias.

Adeus casas de brinco; adeus enganos;
Chichisbéus, Excelências, Senhorias;
Adeus Ninfas gentis, que fazeis anos.

Paulino António Cabral de Vasconcellos
(Abade de Jazente)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

FLOR DE OUTONO














No malmequer da sorte dizes não
A cada pétala que é desfolhada
Palpitas sempre alguma maldição
Na roda dos teus dias malfadada.

Repara e vê na mágica ilusão
Do canto infantil dessa balada
Que ainda é cedo para teres na mão
Um bem-me-quer e um sim na tua fala.

Não fiques magoado no abandono
Da flor que asperge o teu casaco antigo
Com um perfume pérfido de sono.

Não feches desditoso o teu postigo
Há floreados típicos do outono
Que ficariam muito bem contigo.

Abel da Cunha

Imagem: Escultura de C.M.Greenlee

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

NA PÁSCOA









Ao poeta Frassino Machado



Os ovos pela Páscoa eram pintados
De várias cores em sinal de festa.
Com pão-de-ló, amêndoas, rebuçados,
Vieram meia dúzia numa cesta.

A guardiã então mostrou a prenda
Desembrulhando as peças da caçada
À sombra do cruzeiro. Que merenda
Foi nessa tarde ali saboreada!

Num pano sobre o monte da pedreira
Que bem se combinava a cor dos ovos
Com feldspato e quartzo à mistura!

Por trás do horizonte em Nespereira
Brincavam dois irmãos ainda novos
Olhando o fogo em lágrimas na altura.

Abel da Cunha



EPÍGRAFE












Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som  de água ou de bronze e uma sombra que passa...

Eugénio de Castro

In A Sombra do Quadrante
Imagem: Dali, Relógio derretido