quinta-feira, 20 de setembro de 2012

FIM DA TORMENTA












Parou a ventania.
As estrelas dormentes, fatigadas,
Cerram à luz do dia
As misteriosas pálpebras doiradas.

Vai despontando o rosicler da aurora;
O azul sereno e vasto
Empalidece e cora,
Como se Deus lhe desse
Um brando beijo luminoso e casto.

A estrela da manhã
Na altura resplandece;
E a cotovia, a sua linda irmã,
Vai pelo azul um cântico vibrando,
Tão límpido, tão alto, que parece
Que é a estrela no céu que está cantando.

Guerra Junqueiro
[Epígrafe em Vitorino Nemésio, Canto Matinal (1916)]

sábado, 8 de setembro de 2012

ARROZ DE CABIDELA


                                
                                  À prima Migui Vilas-Boas
 
Priminha, graças pelo seu convite
e pela honra de um lugar à mesa.
Nem é preciso fome: o apetite
é despertado pela gentileza.
 
Que dia intenso de calor insano
capaz de tirar tino ao Tolentino!
Atravessei a urbe sem engano
até à Beira. Era um menino
 
arrependido de não ter ficado
aí para um arroz de cabidela.
Mas, tendo ao pé licor tão delicado,
longe da Rosa, que farei sem ela?!
 
Mande um sinal de novo, um só sorriso,
que é muito fácil ir onde é preciso.
 
 
Abel da Cunha
Guimarães, 6 de Setembro de 2012

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

MEDITA-CÃO












Um cão esfomeado anda na rua
a farejar uns restos pra viver.
"Todo o cão é mortal - verdade crua -
E eu sou um cão, o Nero, e vou morrer.

Ah, quem me dera um naco de pão duro,
uma salsicha, um salpicão com ranço,
um osso já esburgado de um monturo,
para chegar de pé ao fatal lanço."

Nas suas patas mal sustenta o corpo
aquele cão vadio e quase morto
que dia a dia espreito da janela.

Mas se eu sair à rua que farei
de mais contrário? Só farejarei
odor de flores e uma triste estrela.


Abel da Cunha

sábado, 1 de setembro de 2012

NISE







Rene Magritte
La grande famille




                        À Maria Inês

Caem as folhas como as aves caem
Nas rimas do bom mestre Sá Miranda;
Cai o silêncio para que outros falem
Nas pedras regeladas da varanda.

O sol da tarde cai no azul dos olhos
Gastos de olhar o verde da montanha;
Nasce outro sol maior com mais abrolhos
Por onde o mundo escuro flores tenha.

Ah, que mover tão meigo tem a vida
Nas frágeis asas agitando o ninho
Até voar a carne endurecida!

Não há fingidas sombras no carinho
Nem no balbuciar da voz flectida
Nem no requebro virgem do caminho.

Abel da Cunha
Setembro 1, 2012



MARCAR O TEMPO

Vieste marcar o tempo
com estrias da alegria.

Nascendo
vieste pedir que a vida

a ti chame Inês.

José Alberto de Oliveira
Setembro 1, 2012

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A UMA FITEIRA













Cordyline australi


Se pudesse amainava a ventania
que rasga as folhas largas da fiteira.
Plantada junto ao muro resistia
   sem se vergar ao tempo altaneira.

   Árvore mãe de todos os cansaços!
   No tronco aberto, velho e carcomido,
   guarda alviões, sacholas e engaços,
   e utensílios que não têm servido.

   Não morrerá talvez. Já tem rebentos
   ao derredor com fitas renascidas.
   Crianças dançam nos seus dias lentos
   e brincam com a água destemidas.

   Ao sol do meio-dia voam pombas
   pousando sobre a terra leves sombras.


   Abel da Cunha

quarta-feira, 25 de julho de 2012

SONETO DA MUSA - I









Pedro Lyra
Fortaleza (Brasil) - 1945


Poeta
          minha cria
                             meu amante
meu deus
                  minha criança
                                          meu capricho
como estás enganado.
                                    Eu sou a Musa:
não tenho e não preciso de poder
(excepto aquele que me destinaste
de te encantar em vez de te oprimir).

Sou a motivação
                             a liberdade
a fonte da beleza
                             isto é
                                        da vida.

Te dou a poesia: que mais falta?

Se fosse necessário
                               inventaria
mas ela é a razão do teu nascer
o bastante a cumprir a tua missão.

Ela que dê-te o mais:
                                   agora segue.

Em troca só te cobro o teu amor.


Pedro Lyra
in Musa Lusa

segunda-feira, 23 de julho de 2012

NO CABO CARVOEIRO






A Nau dos Corvos
no Cabo Carvoeiro




Em frente via o grande mar salgado
e nas marés a força do destino;
a vara que trazia do caminho
não florescia mais naquele Cabo.

O mar não foi aberto nem fechado
ao estender o braço peregrino;
abandonado e sem sinal divino
pousei no chão inerte o meu cajado.

De pés e mãos cravado num rochedo
ou numa cruz de pedra enegrecida,
que barco levaria longe o medo ?

E as ondas agitadas, numerosas,
batendo na aventura ali perdida,
lançavam pelo ar espuma e rosas.


Abel da Cunha