sábado, 29 de outubro de 2011

A CASA




















Era a fonte. Água fresca recaindo
na memória. Velho cântaro de sonhos.
Eram sombras. Nuvens térreas das árvores
com videiras enlaçadas nos seus troncos.

Permanece aceso o quarto dos brinquedos
um ioiô dançando preso nos meus dedos
um pião rodopiando no terreiro
um barquinho de papel regando a tarde.

Ah primeiro chão em que pousei os pés
aprendendo a andar com frágil equilíbrio
e a dizer palavras e a comer o pão!

Laranjeira verde que me vês ao longe
diz-me se me vês partir ou vês chegar
que mal posso olhar por trás desta saudade!

Abel da Cunha


Resposta de Ricardo de Saavedra


Lamento só hoje te agradecer
o saboroso soneto pendurado
em adivinhadas rimas que ondeiam
ao ritmo verde de saudosas brisas

demorei primeiro na fonte a adivinhar
as marfínicas mãos que enlaçavam
o cântaro dos desejos e dos sonhos
e a sombra dos seios e a boca arder de beijos

depois segui a água das palavras
sem pressa nem vontade de entender
o percurso em que de amores se perdem

casas onde entro de antigamente
pé ante pé sem gente dentro
deixam-me sempre assim lento muito lento


Ricardo

AURORA












Como era bom na Póvoa o mês de Agosto!
A nossa casa e o mar ali tão perto.
À noite o Diana Bar ficava aberto
tocando a mesma valsa no teu rosto.

Aurora te chamava. Amanhecia.
A praia sempre limpa - água e sal
na força viva das marés. O areal
todo estendido ao sol resplandecia.

Se o pano azul nos mastros flutuava
descíamos às ondas a nadar
entre sargaços e gaivotas brancas.

Havia um vento suave que passava
e o homem dos gelados a cantar.
Como era bela a cor das tuas tranças!

Abel da Cunha

BONECA DE BAZAR















Boneca de bazar vais presunçosa,
tão confiada no perfume posto!
Passando água e tempo pelo rosto
as maçãs perdem sua cor viçosa.

Com raros cremes caros tu sustentas
uma beleza nítida de espelho
(até no espelho vês de vidro velho)
onde retocas o perfil e a tez.

E como tu observas em silêncio
essa nudez fictícia, o teu jeito
no ajeitar do peito alteado!

Cobre-te pouca roupa o torso tenso
que dia a dia vai ganhando o efeito
de um corpo vivo quase embalsamado.

Abel da Cunha

LAPIDAÇÃO









Sakineh Mohammadi Ashtiani
condenada à morte por lapidação


O Mestre escrevia a sentença
na terra com palavras de clemência
diante da mulher já condenada.

O povo tinha as mãos cheias de pedras
os olhos cegos de profundas trevas
querendo a morte ao vivo encenada.

A força da sentença era um mistério
da cor do pó erguido contra o vento.
Frustrado o povo afastou-se sério
dobrando e desdobrando o pensamento.

Rasgaram longas vestes no Sinédrio
clamaram pela Tora à dura porta:
que a morte tinha um nome era de pedra
que a vida essa teria de ser morta.

Abel da Cunha


NOTA:
Comentários escritos para o blogue da revista romena
Contemporary Literary Horizon onde foi publicado
pela primeira vez o poema Lapidação:

MACHADO DA CUNHA (MC) escolheu preferencialmente o soneto para descodificar a sua linguagem poética. A formatação clássica deriva certamente da exigência cultural que os temas respiram, a impor a conta e o peso, mas nem sempre a medida recomendada para os 14 versos. Porque é a medida que marca o ritmo, a melopeia, e essa não se prende em sílabas ou preocupações tónicas, desenrola-se serena na caruma das ondas formada pelas palavras, descuidadas de tempo e espaço. MC colhe a inspiração nos escaninhos da história e deixa que ela lhe percorra as veias de melólogo, até que as letras sejam frases e as frases vibrações musicais, em clave de sol que brilha no pentagrama da vida. Quem tem ouvidos de ouvir, que veja.

Ricardo de Saavedra
Charneca do Barril (Portugal), 27.02.2012


O poeta vimaranense Abel da Cunha é um lídimo continuador da geração
nortenha de poetas portugueses que, apesar de pós modernistas confessos, sempre resistiram às tentações facilitistas do mercantilismo literário. Assim, dentro de uma expressão escrita emotiva e circunstancialmente intervencionista, procuram engendrar uma poética atual sem perder de vista os moldes classicistas que lhes vão servindo de inspiração e modelo.

Frassino Machado


"Dobrando e desdobrando o pensamento", Abel da Cunha constroi o poema.
Lapidação alude ao confronto aceso entre a vida e a morte, a investida e a
brandura; entre o sentido agreste das pedras e o sopro do ser; entre a
bondade santificante e as mãos lapidantes.
No calor do terreiro público, a cena é densa como denso é o poema que se
ergue entre o ritmo verbal e o movimento firme do pensamento.

J. Alberto de Oliveira



REVOLTA



No cimo da montanha ardia a sarça
e as nuvens prosseguiam cor de fogo
desenhando setas a mostrar ao povo
que só um deus o seu destino marca.

Deu-lhes Moisés as tábuas contra o ouro
moldado no bezerro da desgraça.
-  O céu é longe! A gente vai com pressa
   de achar uma outra lei num pais novo.

Então Moisés quebrou no chão as tábuas.
Por trás o mar vermelho tinha as águas
fechando o desespero e o deserto.

Meteram numa Arca a Lei partida
entrando assim na terra prometida
que o leite e o mel jorravam muito perto.


Abel da Cunha

ARTE POÉTICA










Há poetas que torturam as palavras
no santo ofício da arte de escrever.
Quebram-lhes sílabas e sangram letras,
fazendo-as dizer o que aprouver.

Matéria dos poemas, as palavras
resistem muitas vezes ao seu uso
na construção das formas e metáforas.
Toleram mais a prosa que o abuso.

Mas os poetas acendem a fogueira
num quente auto de fé em que as condenam,
as palavras relapsas nos seus crimes.

E só assim descobrem a maneira
de fazer inscrições das suas penas
e produzir as Obras mais sublimes.


Abel da Cunha

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

HORA XXV






Mostrador
do Big Ben



Contei todas as horas que bateram
Na minha alta torre de marfim.
Tratei dos meus botões nenhuns sobraram
Para tratar dos outros só de mim.

Que fiz da liberdade em que nasci
Sozinho e nú ? De verso em verso
A minha dimensão em vão medi
Medindo em vão a vida do Universo.

Sou rei de um sol que dentro de mim brilha
Mas sempre a noite mais escura encontro
Na formação redonda de uma ilha.

Lá fora um mundo revoltado enfrento
Descalço e rude como na Bastilha
Entrando de rompante por mim dentro.

Abel da Cunha